O DIREITO DE SENTIR

Introdução

Quando pensei a primeira vez sobre esse texto havia saído de um curso sobre comunicação não violenta, diversas questões passaram por minha cabeça, entre elas o problema do nome, pois poderíamos entender, mesmo que de forma equivocada em relação aos princípios da teoria, que existe uma oposição entre uma comunicação violenta e uma não violenta, ou, de forma mais grosseira, entre alguém que bate e alguém que não bate.

No entanto essa não é a questão central deste texto, aqui busco tratar sobre outra fala da apresentação: As atitudes dos outros não são responsáveis pelo que sinto.

Entre os múltiplos significados deste enunciado está: não é culpa de outra pessoa. O que é em parte verdade, pois o que sentimos não é gerado só pelo dito/feito em si, mas também por como estamos no momento, que momento é este, quem falou ou fez e onde isso pode ter tocado ou não tocado em mim, em um dia que vai bem de uma ótima semana o atraso de um amigo tem um significado diferente de quando isso ocorre em um dia péssimo de uma semana ruim, exemplo dado na apresentação.

Durante minha graduação ocorreu durante uma aula de Fenomenologia a leitura de um texto que ilustra bem essa ideia:

"É inverno. A noite está caindo e eu me levanto para acender a luz. Olhando para fora vejo que começou a nevar. Tudo está coberto pela neve brilhante, que está caindo silenciosamente do céu encoberto. [...] Esfrego as mãos e aguardo a noite com satisfação, pois, faz alguns dias, telefonei a um amigo convidando-o a vir ter comigo esta noite. Dentro de uma hora estará batendo à minha porta. [...] Ontem comprei uma boa garrafa de vinho, que coloquei à distância apropriada do fogo. [...] Meia hora mais tarde toca o telefone. É o meu amigo, a dizer que não poderá vir. Trocamos algumas palavras e marcamos novo encontro para outro dia. Quando torno a colocar o fone no gancho, o silêncio do meu quarto ficou mais profundo. As próximas horas se parecem mais longas e mais vazias. [...] Dentro de alguns momentos estou absorto num livro. O tempo passa lentamente. Ao levantar os olhos por um momento, para refletir sobre um trecho pouco claro, a garrafa, perto do fogo, chama a minha atenção. Percebo mais uma vez que o meu amigo não virá e volto à minha leitura.” (VAN DEN BERG, 1981, p. 36).

Ou seja, a experiência em relação a garrafa de vinho é, justamente, uma relação que atravessa a garrafa enquanto objeto físico, sem o abandonar, e a atinge enquanto sentido, quando o amigo vem ela é, ou pode ser, a expectativa dos bons momentos que virão, mas a partir do momento em que é desmarcado passa a ser justamente o esvaziamento destas expectativas, frente ao mais puro nada, enquanto escracho de algo que hoje nos parece difícil de aceitar: que o futuro não existe e não é que não possa existir, mas para tal precisa deixar de ser essencialmente “futuro”, tal qual o passado também não existe mais, não se pode fingir que o encontro permanece marcado, não se pode reproduzir a experiência da felicidade que havia experienciado no passado, talvez descrever ou explicar, mas não senti-la em toda sua potência.

A culpa de sentir

A frase ”As atitudes dos outros não são responsáveis pelo que sinto” também pode ser perigosa e é justamente daí que se desdobra esse texto. Essa frase pode, de forma equivocada, representar aos mal-intencionados uma desculpa para dizer que “se você está triste a culpa é sua”, “se você não está contente com algo a culpa é sua”. Ou seja, a questão se desloca da responsabilidade para a culpa. Devo me sentir culpado por estar triste? Devo me sentir culpado por querer me matar? Devo me sentir culpado por sentir?

O fortalecimento desta lógica favorece em especial a ocultação, evitação e fobia em relação a sentimentos ditos negativos (raiva, tristeza, medo, dor e etc.). Na distorção da responsabilidade para a culpa o sujeito é, novamente como ocorre historicamente no ocidente, cindido. O sujeito singular dá lugar ao sujeito individual, qual a diferença? O sujeito singular existe no conjunto de um universo, um universo de singularidades, de múltiplas responsabilidades e fundamentado em condições práticas, já o sujeito individual poderia ser visto como fruto de um projeto de sucesso individualista, que depende apenas de mim e que se volta apenas a mim, enquanto busca de uma individualidade padronizada, moldada ao mercado, pronta para ser vendida: em livros, séries, filmes, palestras, cursos e etc.

Na mesma medida em que se produz a ideia de um fracasso acadêmico, profissional, econômico, o fracasso emocional também passa a ser concebido como culpa de quem não fez o suficiente para ser feliz, é justamente essa a questão que Byung Chul Han aborda no livro “A sociedade Paliativa”, neste o autor diz de forma clara:

“Há uma mudança de paradigma no fundamento da algofobia atual. Vivemos em uma sociedade da positividade, que busca se desonerar de toda forma de negatividade. A dor é a negatividade pura e simplesmente. Também a psicologia segue essa mudança de paradigma e passa, da psicologia negativa como “psicologia do sofrimento”, para a “psicologia positiva”, que se ocupa com o bem-estar, a felicidade e o otimismo[3] . Pensamentos negativos devem ser evitados. Eles devem ser substituídos imediatamente por pensamentos positivos. A psicologia positiva submete a própria dor a uma lógica do desempenho. A ideologia neoliberal da resiliência transforma experiências traumáticas em catalisadores para o aumento do desempenho. Fala-se até mesmo de crescimento póstraumático[4] . O treino de resiliência como treino de resistência espiritual tem de formar, a partir do ser humano, um sujeito de desempenho permanentemente feliz, o mais insensível à dor possível.” (p. 9)

O autor ainda coloca que:

“Seja feliz é a nova fórmula da dominação. A positividade da felicidade reprime a negatividade da dor. Como capital positivo, a felicidade deve garantir uma capacidade para o desempenho ininterrupta. Automotivação e auto-otimização fazem o dispositivo de felicidade neoliberal muito eficiente, pois a dominação se exerce sem nenhum grande esforço. O submetido nem sequer tem consciência de sua submissão. Ele se supõe livre. Sem qualquer coação estranha, ele explora a si mesmo, crente de que, desse modo, ele se concretiza. A liberdade não é reprimida, mas explorada. Seja livre produz uma coação que é mais dominante do que seja obediente.” (p. 16)

A quem interessa esse ser

Apesar de estar radicado na Europa o autor descreve um quadro comum no Brasil, podemos ilustrar esse quadro a partir dos cursos e palestras vendidos atualmente que afirmam veementemente: sim você é capaz, não importa da onde venha, quem seja, onde esteja, só depende de você, da sua disciplina e eu vou te ensinar como “ser o próximo milionário”. Mas o que esses cursos têm de genial não é em si o conteúdo e sim o fato de sua fundamentação conter um "antídoto anti-falha”, qual? Se der errado a culpa é sua, afinal só depende de você. Como diz Han: “[…] o sofrimento é interpretado como resultado do próprio fracasso.” (p. 18).

Não estranhamente Han também é autor de outro livro que trata sobre a temática, em “A sociedade do cansaço” trata deste movimento de uma sociedade do controle para uma sociedade do desempenho e como justamente neste sentido produz sujeitos esgotados. Se passa a ser vigia e vigiado, condenado a ser livre, a liberdade que era, como falamos sobre os sentimentos, responsabilidade se transmuta em culpa. Em outras, palavras deixa-se de pensar que “posso ser algo” e se passa a pensar “devo ser algo”.

“A positividade do poder é bem mais eficiente que a negatividade do dever. Assim o inconsciente social do dever troca de registro para o registro do poder. O sujeito de desempenho é mais rápido e mais produtivo que o sujeito da obediência. O poder, porém, não cancela o dever. O sujeito de desempenho continua disciplinado. Ele tem atrás de si o estágio disciplinar. O poder eleva o nível de produtividade que é intencionado através da técnica disciplinar, o imperativo do dever. Mas em relação à elevação da produtividade não há qualquer ruptura; há apenas continuidade.” (p. 15)

O sentimento que é preciso dar conta de tudo, ser o mais otimizado e com menos falha, deixa de ser uma questão abstrata e se torna prática, na medida que ao que não tem nada ou pouco passa a ser dada não apenas a possibilidade de se tornar mais (rico, bonito, inteligente, forte, saudável...), mas o dever de consegui-lo. Na contra mão de uma lógica de constante mudança, se impõe o desejo de um constante avanço, assim como se imagina da história de forma errônea, já que não é linear, nem continua e muito menos apenas uma crescente.

Essa questão passa a ser material na medida que o que não tem o que comer passa a poder (e dever) sair dessa condição, fundada em uma meritocracia descolada da realidade.

Ao mesmo tempo vivemos em uma sociedade que pede por mais liberdade, acredita no liberalismo acima da proteção estatal e que ao abandonar o paternalismo estatal precisa também lidar com a pergunta: se neste mundo os bons conseguem e os não tão bons não, será que sou bom o suficiente?

Advogo pelo direito de sentir

Durante todo o texto busco apresentar indícios que a experiência de “sentir culpa por sentir” não é apenas uma coincidência, mas uma forma de manutenção de controle, fundada principalmente pela idealização de um sujeito de desempenho, leia-se produtivo ou até super produtivo, que deve maximizar todos os aspectos de sua vida (bio-psico-social e afetivo), sendo o mais próximo de uma máquina perfeita. O controle desdobra-se de uma relação eu e o outro, para uma matriz interna, de um sujeito que se auto vigia e pune. Como uma hipertrofia do "super-ego" enunciado por Freud.

Pode-se dizer que com a existência das redes sociais essa lógica se torna ainda mais poderosa, uma vez que se convida a expor o quanto somos (produtivos, bem sucedidos, bom e etc.). Um duplo movimento: me envergonho por saber que esse pedaço perfeito que posto é apenas um pedaço do que sou ou até que é um invenção e ao mesmo tempo sou envergonhado pelos outros que se mostram “mais” do que eu, pois desconheço também seus lados ocultos por de trás dos stories.

Além disso podemos apontar que essa questão é fundamentalmente prática, pois ao funcionário não basta trabalhar bem, é preciso: ser produtivo, vestir a camisa, ser proativo, ter senso de dono e outros adjetivos que em resumo definem um sujeito que dissimula seus sentimentos, que por sua ansiedade corre, arruma e tenta se provar constantemente.

Conclusão

Acredito que devemos ter o direito de sentir, de chegar de mal humor, de nem sempre sairmos felizes, principalmente entendendo que o sentir pode ser um sintoma, apagar a fumaça e não fogo provavelmente vai te levar ao Burnout. Não entenda que esse texto é um convite à irresponsabilidade, que tudo é culpa do outro ou do mundo, mas como uma reflexão sobre a potência do afeto como motriz do humano. Não basta estar vivo e ser um zumbi que se alimenta de bolsas, carros, festas e posts.